TRANScendendo barreiras
No Brasil, apesar dos avanços, questões relacionadas a diversidade de gênero, ainda tem posição muito insipiente no meio científico, de modo que poucos são os profissionais de saúde que buscam o entendimento das necessidades peculiares que esses pacientes apresentam.
Visando fornecer uma assistência que unisse humanização com ciência, desde o início de minha formação enquanto cirurgião plástico, dediquei muita energia e tempo a essa causa, buscando entender melhor aa demanda de pacientes trans, para que assim pudesse um dia fornecer uma assistência em saúde diferenciada. Meus esforços obtiveram frutos, com reconhecimento nacional e internacional, desde as minhas primeiras publicações de artigos, até a publicação do meu livro digital, TRANScender, um Manual orientador para Cirurgiões Plásticos sobre assistência em saúde a pessoas trans.
NOMEMCLATURA
Antes de mais nada é importante delinear alguns conceitos básicos neste tema:
• Sexo biológico: refere-se especialmente às características físicas e biológicas que são fisicamente evidentes ao nascimento, e é frequentemente encontrado nas frases “designado como do sexo masculino ao nascimento” (AMAB, na sigla em inglês) e “designado como do sexo feminino ao nascimento” (AFAB).
• Identidade de gênero: sensação interna de ser homem, mulher ou gênero diferente, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído a um indivíduo ao nascer ou às suas características sexuais, costumo exemplificar como a “imagem em espelho”.
• Expressão de gênero: Roupas, aparência física e outras apresentações e comportamentos externos que expressam aspectos da identidade ou papel de gênero.
• Incongruência de gênero: A experiência marcante e persistente de discrepância entre a identidade de gênero da pessoa e o gênero esperado dela com base no sexo biológico atribuído ao nascimento.
• Disforia de gênero: Desconforto ou sofrimento relacionado a uma incongruência entre a identidade de gênero de um indivíduo e o sexo atribuído ao nascimento.
• Cisgênero: Utilizado para descrever um indivíduo cuja identidade e expressão de gênero se alinham ao sexo atribuído ao nascimento.
• Transgênero: um termo abrangente que engloba aqueles cujas identidades ou papéis de gênero diferem daqueles tipicamente associados ao sexo designado no nascimento, aqui estão pacientes Transexuais, Travesti, não binários, e outras expressões de gênero.
• Gênero não binário: inclui pessoas cujos sexos compreendem mais de uma identidade de gênero simultaneamente ou em momentos diferentes (p. ex., bigênero); que não têm uma identidade de gênero ou têm uma identidade de gênero neutra (p. ex., agênero ou neutrois); têm identidades de gênero que abrangem ou mesclam elementos de outros gêneros (p. ex., poligênero, demigaroto, gemigarota); e/ou que têm um gênero que muda ao longo do tempo (p. ex., gênero fluido).
Logo a incongruência de gênero dá-se pela não paridade entre o sexo biológico e o gênero pelo qual o individuo identifica-se, de modo que essa questão poderá causar um desconforto, disforia, que o levara a buscar expressões de gênero que o tornem com características mais semelhantes as do gênero que se identifica, neste cenário a medicina pode contribuir seja pelos tratamentos hormonais, cirurgias da voz ou cirurgias plásticas.
Didaticamente, há uma tendência de perceber que todo individuo com incongruência do gênero apresente obrigatoriamente uma disforia genital, e esses pacientes buscariam cirurgias de transgenitalização, ou seja de modificação na genitália externa, porém esse é um conceito que vem sendo questionado, pois ao longo dos anos, é cada vez menor o numero de pacientes com disforia de gênero e que buscam cirurgia de modificação da genitália, uma vez que esses vem preferindo cirurgias faciais, mamarias e de voz, visando uma paridade maior entre as características físicas e o gênero, com maior “passabilidade”, esse termo se refere a capacidade de uma pessoa ser considerada membro de um grupo ou categoria identitária diferente da sua, e assim circular no âmbito coletivo sendo reconhecido(a) como sendo do gênero do qual se identifica, tal qual um indivíduo Cisgênero.
UMA DICA:
Para evitar erros, ou situações de desconforto, tendo em vista a abrangência que essas nomenclaturas possuem, recomendamos usar o termo “Trans” para os indivíduos que apresentam incongruências, haja visto a variedade de apresentações identitárias.
OUTRA DICA:
Pacientes Travestis, são indivíduos biologicamente do sexo masculino, que se identificam com a expressão de gênero feminino, porém em sua identidade não se veem como mulheres, e não há disforia genital, devemos usar sempre pronomes femininos e atualmente já temos o adjetivo “Queer”, que descreve um indivíduo cuja identidade de gênero não se alinha com uma compreensão binária do gênero, incluindo aqueles que se consideram tanto homem como mulher, nenhum dos dois, movendo-se entre os dois, um terceiro gênero ou completamente fora do conceito de gênero. Alguns se referem a si mesmos como não binários em relação à sua identidade de gênero e/ou papel.
Então, entendemos que:
- Mulheres trans: São pessoas que foram designadas como do sexo masculino ao nascimento (AMAB, na sigla em inglês) e adotaram a identidade de gênero de mulher, independentemente de terem sido submetidas a qualquer transição médica de gênero.
- Homens trans: pessoas que foram designadas como do sexo feminino ao nascimento (AFAB) e adotaram uma identidade de gênero como homem, independentemente de terem sido submetidas a alguma transição médica de gênero.
É importante lembrar que orientação sexual é o padrão de atração emocional, romântica e/ou sexual que as pessoas têm em relação aos outros. Também se refere ao senso de identidade pessoal e social de uma pessoa com base nessas atrações, comportamentos relacionados e participação em uma comunidade de outras pessoas com atrações e comportamentos semelhantes. A identidade sexual é diferente da identidade de gênero, logo um individuo que tem atracão por outro individuo do gênero oposto é designado como “Heterossexual” e aquele cuja atracão seda por outro do mesmo gênero “Homossexual”, podendo ele ser Cisgênero ou mesmo Trans, quando, por exemplo uma mulher trans passa a ter atracão sexual e afetiva por outra mulher, seja ela Cis ou Trans.
A MEDICINA E AS PESSOAS TRANS
A medicina desempenha papel relevante na vida de pacientes Trans, uma vez que muitos padecem de disforias de gênero e buscam na medicina recursos para uma maior paridade entre suas características físicas e o gênero o qual se identificam, neste cenário a cirurgia plástica ganha destaque.
Atualmente a assistência medica a pacientes Trans está regulamentada por uma resolução, ou seja um conjunto de normas e orientações, editada pelo Conselho Federal de Medicina, onde se prevê que após firmada a condição de transgeneridade, o individuo posso ser avaliado e acompanhado por uma equipe multiprofissional composta por profissionais de varias áreas como: saúde mental, endocrinologia, cirurgia plástica, estes devem atestar a condição de incongruência, mediante os critérios referenciados pelo conselho, e mediantes os requisitos técnicos iniciar hormonioterapia e/ou procedimentos cirúrgicos em um processo que denominamos de “afirmação de gênero” ou processo “transexualizador”, no qual podem estar inseridas cirurgias plásticas, lembrando que cirurgias plásticas não são obrigatórias nesse processo, dependendo da demanda de cada paciente, por exemplo, há mulheres trans que estão satisfeitas com o aumento mamário obtido por meio de hormonioterapia, e não desejam cirurgias de Mamoplastia com implantes de silicone.
DICA IMPORTANTE:
Não confundir Processo Transesualizador com a Cirurgia de Transgenitalização que é o procedimento que modifica o aspecto do genital externo, e somado aos demais procedimentos compõe o todo, que é o processo Transesualizador, não sendo uma demanda da maioria dos pacientes nesta última década;, vale lembrar que a Neofaloplastia com Metoidoplastia, cirurgia do genital de feminino para masculino ainda tem caráter experimental e não pode ser realizada no âmbito privado, apenas em ambientes universitários, já a cirurgia de neocolpovulvovaginoplastia, cirurgia do genital de masculino para feminino, nos casos em que o paciente cumprir os critérios estabelecidos pelo CFM para realização deste procedimento, pode buscar um médico especializado para realiza-lo e pagar os custos necessários.
SOBRE A PRIMEIRA CONSULTA
A primeira consulta é um momento bem singular nos casos de cirurgia de afirmação de gênero, nestes casos, busco entender todo o processo vivido pelo paciente, até o momento no qual ele se vê como um individuo trans, busco entender sua rede de apoio familiar, além de avaliar quais profissionais já o acompanham. Durante a abordagem técnica, ouço sua queixa principal, motivo que o fez buscar minha assistência.
Numericamente o procedimento mais almejado pelos homens trans e mulheres trans, são os procedimentos de Mamoplastia, do tipo Masculinizadora e de Aumento, respectivamente, esse fato é bastante compreensível quando usamos de empatia na nossa atuação, já que as mamas são estruturas corporais que remetem muito ao aspecto feminino dos indivíduos, sendo um incomodo para os rapazes que possuem mamas de aspecto de volume aumentado e acabam utilizando artifícios como o “binder” para camufla-las, e para as mulheres que apresentam mamas de volume reduzido, sem o decote feminino característico.
Vale salientar que, também há outros procedimentos, como a Tireoplastia do Pomo de Adão, que diminui a proeminência de cartilagem no pescoço de mulheres trans, sendo que, a literatura não cita uma ordem de realização dos procedimentos do processo transexualizador, contudo, por meio de um Projeto terapêutico singular, buscamos realizar em um tempo inicial a cirurgia mamária, pelos impactos que ela promovera na qualidade de vida dos pacientes, e reservamos para um ultimo momento a cirurgia de transgenitalização, pois, entendemos que há uma necessidade de amadurecimento de idéias visando melhor compreensão e colaboração dos pacientes durante o processo cirúrgico.
PARA OS MENINOS TRANS
Como citei inicialmente a maior demanda desse grupo de pacientes é a cirurgia mamária. Após a avalição inicial da mama, no que se refere ao volume mamário e a flacidez das mamas, defino o procedimento mais adequado para o paciente, sob meu ponto de vista e experiencia. Em um número considerável de meninos realizo a técnica descrita e publicada por mim, na qual um retalho reconstrói a aréola, mantendo sua sensibilidade, esses são os casos de mamas de tamanho intermediário com pouca ou nenhuma flacidez. Nos casos de mamas pequenas, geralmente realizamos a técnica periareolar, e para mamas de grande volume e/ou flacidez severa, outras técnicas como a amputação com enxerto de aréola, acaba sendo mais adequada, associo técnicas de lipo HD para melhor definição do contorno muscular peitoral, inserimos drenos suctores, que permanecem por um período variável, associo o Knesiotapping e o uso de malhas compressivas.
Um ponto importante é sobre a hormonioterapia, a qual deve ser suspensa 1 mês antes da cirurgia e retomada um mês após, realizados profilaxia para Tromboembolismo, além de uso de medicamentos que auxiliam na cicatrização da aréola.
IMPORTANTE:
A cirurgia mamária de afirmação de gênero do feminino para o masculino é melhor denominada como “Mamoplastia” e não “Mastectomia”, já que mastectomia é um procedimento oncológico que remove de 95-100% do tecido mamário, e nos casos de meninos trans, além de trabalhar com a redução do volume mamário, também buscamos reduzir o tamanho da aréola, deixando em forma mais elíptico que circular e em posição mais inferior e lateral, compatível com o aspecto do tórax masculino, logo, o termo Mamoplastia Masculinizadora tem sido citado como mais apropriado.
Outros procedimentos como cirurgias ortognatias e implante capilar na barba são uma realidade que cada vez ganha mais força com o aperfeiçoamento dos profissionais no âmbito da assistência em saúde a pessoas trans.
PARA AS MULHERES TRANS
Como citei ao longo do texto, a cirurgia mamária é de longe a mais buscada por pacientes trans, mas, vale ressaltar um ponto que não é de conhecimento de todos os profissionais, a MAMOPLASTIA DE AUMENTO em mulheres trans é tecnicamente bastante distinta da mamoplastia de aumento que realizamos em mulheres Cis, e o desconhecimento deste fato, faz com que pacientes busquem profissionais para realizar este procedimento e acabem apresentando resultados indesejáveis.
Ao indicar o procedimento de mamoplastia para mulheres trans, realizo a aplicação de um questionário a ser preenchido com dados do exame físico que realizo, na intenção de definir as características do implante de silicone e outros detalhes do procedimento. De forma geral os implantes utilizados são os de formato anatômico com projeção moderada, uma vez que esse padrão contempla uma base compatível com base da mama, e este formato é adequado quando aréola esta posicionada inferiormente, para melhor posicioná-la.
IMPORTANTE:
A distância aréola-sulco inframamário é de cerca de 5,5-6,0 cm na mulher e 3,5 cm no homem, nesta condição implantes anatômicos conseguem um melhor posicionamento areolar, em contrapartida implantes de formato redondo, que são utilizados na maioria dos procedimentos de mulheres cis, promoverão um resultado inestético com aréola voltada para parte inferior da mama,
Na avaliação, realizo primeiramente a medida da base torácica, que varia 12-15 cm, sendo que para cada medida a um volume, sendo que 12 cm de base mamária correspondem a um volume de implantes de 300-400 ml, e uma base de 15 cm implantes de 600-700 ml. Na sequência realizo a medida da distância do sulco até aréola que deve ser proporcional a base, neste momento decido se será necessário rebaixar e recriar o sulco inframamário. A incisão é realizada no dito sulco, com tamanho de 3,5-5,0 cm, sendo que avalio a quantidade de tecido mamário da paciente, que geralmente é suficiente para inserir os implantes no plano subfascial, evitando o plano submuscular, que confere resultados menos naturais. Realizo ainda enxerto de gordura no polo superior e medialmente na linha do decote, visando otimizar a cobertura dos implantes e tornar o resultado mais agradável.
Além dos procedimentos mamário, realizamos os procedimentos de feminilização cervico-facial, dentre esses estão o avanço capilar, feminilização da face e a tireoplastia da proeminência laríngea. Mulheres trans buscam procedimentos que atenuem sinais de alopecia androgênica, visto que pessoas do sexo feminino biologicamente falando tem implantação capilar regular em formato de arco, sem as famosas “entradas”, em relação a face, estão incluídas cirurgias ortognatias, rinoplastia e frontoplastia, na qual a região frontal é trabalhada para promover um aspecto mais delicado e circular em contrapartida ao formato quadrangular masculino. A Tireoplastia é bastante requisitada, neste procedimento, através de uma pequena incisão no pescoço realizamos o desgaste da proeminência laringe, o chamado pomo de Adão, que é bastante estigmatizante para mulheres trans, sendo que procedimento de tireoplastia promove resultados impactantes na autoestima das pacientes, ajudando na identificação da sua autoimagem e no convívio social.
ATENÇÃO!
Com a recente decisão do STJ em dezembro de 2023, uma nova era começa para as cirurgias de afirmação de gênero no Brasil. Eu e minha equipe sempre buscamos a garantia do direto dos pacientes trans, e agora temos a consolidação desses direitos após da Corte suprema do país decidir em favor de uma paciente trans na ação movida contra uma operadora de saúde que se negava a custear sua Mamoplastia, ou seja, com essa decisão a Corte cria uma prerrogativa para ser aplicada nos demais casos, nos quais operadoras de saúde negam o direito a cirurgias de afirmação de gênero, sendo assim todas as OPERADORAS E PLANOS DE SAÚDE DEVEM CUSTEAR OS PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS DO PROCESSO TRANSEXUALIZADOR, não sendo o paciente obrigador a aceitar um médico credenciado ao plano de saúde, sem que o mesmo tenha a expertise para procedimentos de afirmação de gênero, sendo dever da operadora custear gastos médicos, hospitalares e com implantes, quando for o caso.